14 de fevereiro de 2010

O Último

O último verso há de ser o mais bonito.
O último, pra fechar com chave-de-ouro
O último, pra deixar a poesia na mente
O último, pra que se conclua.

Mesmo que sejamos reticentes
Mesmo que seja mentiroso.
E que seja o último só por ser.
Mesmo que seja roubado.

E que a minha poesia discorra estridente
Pra que o último, justo o último surpreenda.
Que seja o suspiro final
do seu próprio leito de morte.

Porque o último há de ser o mais poético.
Pra que, satisfeitos, deixemos o papel de lado.
Que tardemos até o último ponto.
O último e derradeiro verso.

És

És a cura e és a cara
És tão dura e tão rara
És a usura que perdoara
És mesmo escura e tal qual, clara
És da fartura que se instalara
És da loucura, tornas-te tara
És tal mesura que não repara
Que fostes sempre o que és: lar.

8 de fevereiro de 2010

Carta a Syme (que nunca seria sequer enviada)

Pesa-me na consciência a minha capacidade de te esquecer assim tão rapidamente. Pesa o fato de você nunca ter sequer existido, exceto por talvez uma fagulha de pensamento, de lembrança, mero sonho pessoal. E pesa-me ainda o fato de que, talvez por conta desse texto, provavelmente dentro de alguns dias eu não mais existirei e nunca terei existido. Não terei nome, nem identidade, rosto e ninguém lembrará que um dia eu habitei esse lugar. Mas eu me lembro.
Lembro do seu jeito de deslumbrar-se com o seu ofício, o que me causava certa repúdia; lembro dos olhos brilhantes quando você o mencionava; lembro da sua inteligência desperdiçada em toda a bitolação do Partido; lembro-me dos seus óculos. Da cor dos olhos não me lembro mais, tampouco da forma do rosto, o que passariam desapercebidos diante da conquista que é conseguir te saber, considerando a situação em que estamos.
Confesso que, apesar dos questionamentos serem concretos na minha cabeça, pensei, por vezes, não haver saída. Isso até encontrá-la: Júlia! Camarada, ela era a saída que eu procurava. Uns dez ou quinze - não se sabe ao certo - anos a menos do que eu. Alva, jovem, inteligente, o rosto não exalava beleza, confesso, mas os seios firmes, a dedicação, a sensualidade compensavam tudo. Talvez pela fitinha vermelha na cintura (que simbolizava, falsamente, o zelo pela Liga Juvenil Anti-Sexo), pela rebeldia inconsequente ou simplesmente por encontrar alguém pra dividir meus sentimentos anti-Grande Irmão, vi nela a oportunidade.
Não sei o porquê dessa carta. Sinto estar escrevendo ao nada. Escrevo a alguém que nunca nem sequer existiu (espero não estar sendo convencido dessa ideia). Escrevo àquela fagulha de pensamento, de lembrança, ao mero sonho pessoal que és. Escrevo à oportunidade que você dispensou, optando ou sem perceber as alternativas, ao seguir fielmente às ordens deles: a oportunidade de pensar, na qual, creio eu, você seria muito bem sucedido.
Encerro sentindo-me tolo por concluir - e agora me assegurar - que esse papel não chegará às suas mãos. Provavelmente acabará escondido dentro de um livro velho para a posterioridade. Posterioridade esta que não deve durar mais que alguns dias, até que tudo seja refeito novamente e, por fim, eu e o que resta de ti sejamos vaporizados.

Com pesar, do Camarada Winston.

PS.: Ainda sujeito a mudanças.
PS.: Feito durante o capítulo 16, portanto, com informações só até tal ponto. :)

5 de fevereiro de 2010

Insônia

Não consigo dormir. Chove. Isso à noite é triste. A noite é triste.
Não tenho muito no que pensar, sinto-me cansada. Mas também não tenho o que fazer. Quem sabe ligar pra alguém? Mas a essa hora? Seria incômodo.
Ler? Mas os meus livros são muito curtos, acabariam antes que eu dormisse. Outros são muito compridos e eu não chegaria no final.
Talvez se eu me revirar assim e fechar os olhos... Não. Não consigo dormir!
O que mais eu poderia fazer? Olho à minha volta e vejo o violão. Poderia me fazer dormir perfeitamente, se não fosse o fato de meu irmão dormir no quarto ao lado do meu.
Vou até a cozinha e preparo um chá. Numa noite fria como esta deve ser a solução. Mas não é. E me encontro novamente sentada na cama, os olhos bem abertos, a mente cansada.
E se eu fosse dar uma volta lá fora? Mas chove. E isso à noite é triste. A noite é triste.
Amanheceu. Peguei no sono.

PS.: Texto bem antigo.

4 de fevereiro de 2010

Amigo

É um perigo quando ela reza assim. Fecha os olhos e murmura palavras acalentadoras. É um perigo que nas piores horas ela consiga se sentir bem. Vai contra o senso de preservação humana.
Não é perigo, porém, se por dentro o sofrimento impera. Não há perigo se faz para me proteger, pois é sabido que a dor de um aumenta a dor do outro. Nesse caso, o nome é amigo.

Previsível

Desceu do ônibus pontualmente e se deparou com um jovem encostado na parede.

-Vinte pras sete.
-Mas eu não perguntei nada.
-Desculpe, senhor, é que você chega aqui sempre na mesma hora e faz sempre a mesma pergunta.
-Ei, não me chame de previsível!
-Previsível ninguém é, senhor, mas dá pra fazer uma média dos outros dias e concluir que o senh...
-Não diga asneiras! - esbravejou o senhor, brandindo a maleta de couro.
-Não quis ofendê-lo, senhor, apesar de saber que se ofenderia.
-Uau! Você me conhece tão bem, não é? - ironizou o homem - Vamos lá, espertinho, o que farei agora?
-Vai tentar me provar que não é previsível.
-Pare com isso! - reclamou nervoso
-Desculpe, senhor. Repito que não quis ofender, foi só um toque...
-Com licença, mas sou ocupado e tenho de trabalhar - disse enfatizando a última palavra, dando as costas ao garoto e pisando forte.
-Ei! Já pensou em faltar no trabalho e, sei lá, viajar pro Japão? Imagino que um homem muito ocupado tenha dinheiro pra isso, não é?
-Isso seria loucura!
-Eu sei. - falou abrindo um sorriso esperto - Bom trabalho!

* * *
O jovem encontrava-se lá parado novamente, quando o homem chegou sorrindo.
-Vinte para as sete, senhor!
-Não, seis e quarenta.

3 de fevereiro de 2010

Si

Ela finge que é.
Finge uma graça.
Finge um trejeito.
Ela finge umas manias.
Finge uns gostos, uns rostos.
Ela finge amores
E novas dores.
Ela finge que sabe
Finge que é bonita.
E não é que - veja bem - é bonita mesmo?
Ela não sabe disso.

PS.: Pra uma amiga que não sabe que é a destinatária.