23 de maio de 2011

Ao meio

O sol derrete o asfalto embaixo e seca o céu em cima. Mãos que passeiam pela testa úmida, pelo buço suado e ainda assim alcançam os sorrisos, de tão toscamente palpáveis que são. Vão Max e Zé com o mesmo passo, ainda que diferentemente subdividido. José leva a maior expressão de satisfação e Max leva a língua de fora, ofegante. Zé diz "que calor!" somente como resposta imediata ao incômodo que é a temperatura, não que seja solução, mundo mundo vasto mundo, pois pra esse Zé a festa ainda não acabou. E agora? Max, incômodo-estímulo, pausa para xixi e segue. Pode-se notar nos seis membros que os carregam uma constância de movimentos: retraído, relaxado, retraído, relaxado. Pode-se ouvir o inflar dos dois pulmões, as unhas de quatro patinhas no chão e a endorfina sendo liberada e jogada na correnteza que são as veias. Vê-se uma dupla mesmo alegre andando. Ele ganhará biscoitos quando voltar. Porque passeio é sinônimo de biscoito e Max gosta de biscoito, pode-se ver no seu rabinho que abana.
Estacionam uns carros e o movimento hoje é grande. "Parece que vai ter algum Corinthians e Palmeiras ou algo assim." diz a atendente que não entende nada de futebol. Estão comprando cervejas e foi aqui o lugar escolhido "porque estava no caminho mesmo." Os torcedores de camisas verdes se vão e, em segundos, sobra o barulho das bombas de gasolina, o frio do ar condicionado mal-regulado, a estupidez das revistas de fofoca e eles dois: a atendente que agora resmunga para a tevê e o poeta. Este segura um livro e de olhos baixos, bem próximo à gradezinha de onde tirou seu exemplar, aproveita uma versão de bolso pela qual nunca pagou e que achou ali em meio a livros da Zibia Gasparetto, outros de auto-ajuda e uma pseudo-comédia feminista. A verdade é que o poeta nem liga para o teor dos vizinhos de seu livro; volta sempre e pega sempre o mesmo livro, sem conseguir entendê-lo por completo. Lê as primeiras páginas, volta à capa, relê a sinopse. Em alguns determinados dias chega à última frase do livro que não esclarece nada; pelo contrário: confunde mais. O poeta é um homem compreensivo, já leu de tudo e sabe um pouco até de mecânica, dos manuais de instrução, e de enfermagem, das bulas de remédio.
Max e Zé chegam na casa bonita no bairro relativamente bom em que moram. No parapeito, Pelargonium hortorums muito rosas foram plantados pela esposa de José, que passa o dia assobiando para as flores, para o feijão, para a cândida e para si mesma. Seus ouvidos, ocupados por essa atividade, não sabem de outra coisa a não ser aquele silvo agudo que rebate nas paredes brancas e volta, assim, tão alegre quanto ela. Voltemos a nossos personagens principais: Max abana o rabo mais forte agora, como se fosse possível, e José lava as mãos enquanto sonda um bolo ainda quente que sua esposa preparou. Abocanha-o. O corpo é mesmo inteligente: lá se vai açúcar goela abaixo e a sensação de prazer que o toma é resposta para aquela energia que, dentro de algumas horas, se infiltrará nas células adiposas dele. Ele não sabe disso. Come e se delicia e não vê mal em mais um pedaço. E mais um. E mais um sem parar.
A atendente não mais se aborrece: já acostumou-se com o poeta que esbraveja ao reler e reler as mesmas frases. Devo dizer que ele, há certo tempo, aprendeu a odiar aquele cujo nome vem sempre estampado nos livros que ele procura: Vladimir Maiakovski. O problema do poeta, a quem dou aqui nome que espero que o liberte (Carlos, que tal?), é que pode entender as frases do escritor literalmente, pode até captar seu sentido conotativo, mas só vê ali mentiras. A indignação vem de, sendo o homem informado que é, ouvir tanto bem-falar do tal Maiakovski e não ver em seus escritos toda essa genialidade. Ver somente mentiras. Poeta-leitor é o que é. E é isso que o amarra àquela leitura: a sede de entendê-la. Ele sabe que ali, em algum lugar, deve haver alguma verdade ou algo que, finalmente, dê sentido ao livro.
José sai da cozinha lambendo os dedos e se joga no sofá, pegando o controle e aceitando o canal no qual a tv já estava. Ele ouve alguma coisa interessante sobre culinária, mas o assunto muda para outro: aquela moça da novela que traiu o namorado com o cunhado. Logo que ele se interessa, vem outro que já o fez esquecer a receita: tragédia no Rio de Janeiro, uma breve história comovente que faz sua esposa parar no corredor, com os olhos marejados, segurando o pano de prato sem notar. "Que tristeza! Imagine perder tudo, amor." e ele sente uma vontade inédita de dar moradia à criança que chora na tela. A tv começa repentinamente a falar sobre política e as lágrimas se vão, seguidas pela negação que a cabeça dela expressa. José não pode acreditar no que acaba de presenciar: sua esposa desligou-se da reportagem como um se houvesse um botão para tal. E então, assustado, ele clama pela tristeza dela e recebe somente olhares de estranhamento.
Maiakovski continua dizendo suas intensidades. Friso novamente a inteligência de nosso Carlos. Então como a vida poderia ser aquilo? Nosso poeta nunca precisou de alguém a ponto de ir à sua janela implorar. Mas é gente: Carlos já teve mulheres, já fez sexo muitas vezes na vida, já amou suas namoradas, já odiou suas namoradas, já sentiu falta e já se livrou delas. Aos 37 anos não quer se matar (ah, Vladimir...). Agora vive sozinho numa loja de conveniência que o entende tanto quanto todas as que se deitaram com ele. E então Maiakovski repete as coisas que nunca existiram, cria imagens, se joga de um sentimento a outro e faz o poeta notar, finalmente, coisas maiores que a métrica: que as coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão. Platônico, ele pensa, mas resolve desclassificar seu pensamento.
José nunca se foi e Carlos nunca foi seus amores. Em José há nostalgia, em Carlos, insegurança. Que perda de tempo! Que perda de tempo! Físico e mental. Externo e interno. O feliz e o triste? Nossos dois dão um passo um pra mais perto do outro e no meio há a verdade: a coroação de si mesmo.

PS.: Maiakovski, Drummond e Baleiro, com uma pitada de Camelo.

21 de maio de 2011

Da realeza

Que tragam as frutas de melhor colheita,
aos felás darei os caroços.
E leiam-me as mais belas canções
e os felás que criem seus carnavais.
Tragam-me a sabedoria e os vinhos mais antigos,
aos felás o prazer carnal sem refinaria.
Que tenhamos sempre a fartura
e os felás hão de nos fornecê-la.
Para tudo, aos felás o que der,
aos nossos fellas, o que quiserem.

19 de maio de 2011

Vergueiro

Estabeleceu-se tempo de escassez criativa de mim, devida ao meu atual período de absorção: tenho lido, ouvido muitas coisas, conversado muito e visto muitas coisas novas, bonitas, feias, inclassificáveis, mas, acima de tudo, reais. Enquanto a fase não passa e as coisas não voltam àquele mesmo jeito de sempre, fico aqui aquecendo e vendo crescer os pensamentos e estimulando-os muito. Com a finalidade de não deixar o blog a criar teias de aranha e a ser ausente nos vossos históricos e com a finalidade de me distrair um pouco venho contar-vos uma história pela qual esse blog e essa pessoa já passaram.
A partir do meio do ano passado até o final dele, eu estudei na rua vergueiro, longe da minha casa, mas bem próximo do lugar que viria a ser meu. O que acontece é que na mesma rua situa-se o Centro Cultural de São Paulo, aonde eu ia quando, no intervalo ao meio-dia entre uma escola e outra, havia um momento só pra mim. Por vezes, eu almoçava rápido só para correr pra lá. Acontece que me acostumei com sentar naquele banco e ver as pessoas pra lá e pra cá, passar os olhos pela programação de shows, ver as aulas de dança que aconteciam no auditório, comer os muffins deliciosos do restaurante e escrever. Sim, muitos dos textos aqui postados foram feitos sob aquele sol, observando aquelas pessoas e, mais, me deleitando com aquele silêncio que não pesa. A biblioteca do centro cultural também é muito legal. Fica no subsolo e tem uma gibiteca gigantesca que, na verdade, nunca me chamou tanto a atenção quanto as mesinhas nas quais eu me sentava pra fazer todos os tipos de lições, trabalhos, textos e descobertas. E o mais legal daquele lugar era que ele era todo meu, eu ficava sozinha lá, às vezes parada, quietinha, em silêncio e o tempo também parava, mas às vezes preocupada, sob chuva, sob sol e enrolada em casacos pesados. O lugar era meu.
Tinha mais uma: sempre gostei da tarde para descansar. Para mim, manhãs são agitadas e vivas, noites são pensativas e úteis, mas as tardes são feitas para o descanso e a restauração.
De qualquer forma, a combinação dos fatores me fez gostar do lugar e voltar lá toda vez. A inspiração que fluia devia ser resultado da liberdade mental que eu me concedia naqueles momentos tão brandos. Decidi agradecer o Centro e escrevi tantos poemas quanto foi possível, mas não queria guardá-los pra mim e escrevi-os nas paredes. Literalmente. Começava por um título, discorria sobre o assunto que fosse - e foram diversos - e terminava com o link deste mesmo blog que vós ledes. A quantidade de poemas escritos foi a mesma de poemas apagados, mas eu nem me importava: retornava e vinha com novos versos. Hoje acho tudo meio estranho e feio, mas o impulso era sempre mais forte e eu não podia segurar a mão que avançava com sua espada colorida em direção às portas dos banheiros, paredes, espelhos e cantos da biblioteca.
Eis que um de meus pensamentos trouxe-me o mais lindo dos resultados. Num texto qualquer aqui postado, recebo o seguinte comentário: "te encontrei no banheiro do centro cultural vergueiro" Só. Sem pontuação. Sem resposta quando pedi por uma. Somente essa mensagem de alguém que leu e teve a ação de não simplesmente clicar num link, mas se interessar, copiá-lo e vir procurar por ele. E esse gesto bobo, que aqui aumentei um milhão de vezes, me fez e me faz continuar escrevendo.

5 de maio de 2011

Ode à exatidão nas minhas humanidades(ou A tentativa de tal assassinato)

O mundo pede um ultimato
E eu mato que é pra não mais viver
O mundo me quer morto, me quer farto
Porque senão eu surto e eu posso e eu passo.

O mundo me pede um fato
Um dado matemático pra jamais duvidar
O mundo me quer pouco e age
E é ultraje pensar e eu penso e eu penso

E então há o indiscutível sim.
E, portanto, o rígido não.

E cadê o talvez que não é nem verdade?
O quem sabe que quer e muda de ideia?
Cadê os quereres, os dizeres, os cadê-res?
O pode ser de quem se subverte o sentido?
Cadê as perguntas ao fim do poema que tem como finalidade me responder?

(O são pelo simples ponto de interrogação?)

1 de maio de 2011

Como em todas as madrugadas

A noite cairia, mas como se sempre se fizesse presente, já que seguiria uma tarde cinza. Se instalaria tal escuridão daquelas que nem a Lua se vê e que não seria digna de contemplação. E então respirariam fugindo à densa - quiçá líquida - forma do ar algumas luzes: faróis de carros e o semáforo. A TV estaria quebrada e tu não terias paciência para teclar. Fome não haveria. Somente a vontade do corpo; aquele desejo incessante de correr, suar e de ter o coração rufando no peito. Tampouco a sede incomodava: na realidade, pedia-se a sede, enquanto último vestígio de instinto. Então, tu colocarias teu batom mais vermelho e deixarias o cabelo bem armado, como tu sempre gostaste. As unhas tu cortarias. Tu roerias bem rente à carne e faria derramar rubro sangue e provar-te-ias viva. Viria então o ciclo, na mesma madrugada. As mesmas luzes refletiriam teu rosto branco, te fazendo notar o quanto tu odeias aquele batom, que tanto te fazia remeter à sexualidade. Tu odiavas ter que pô-lo a ninguém. Tu pentearias os mesmos cabelos da mesma maneira de sempre, pois a necessidade imperaria sobre a beleza. A mesma música rolaria no ar. As madrugadas paulistanas teriam o mesmo amarelo. E ainda a mesma Lua se esconderia na mesma nuvem. Mas de alguma forma tu serias como nunca foi. O batom deixaria vestígios no lado interno de teus lábios e tu notarias que aquele som que se ouvia seria assim escutado pelo resto de teus tímpanos a menos que tu resolvestes soar.