Recitava
vagarosamente enquanto escrevia. “Tomar um com-pri-mido a cada oito horas.” O
homem do outro lado da mesa parecia em transe. Se fixasse seu olhar em alguma
coisa por alguns segundos sentia que podia vomitar. “Mas pra que esses
remédios, doutor?” O médico tirou os olhos do papel e enrugou a testa, com o ar
paternal e divino que os médicos conseguem ter quando lhe entregam notícias de
você mesmo. Oi, tudo bem? Tudo e comigo,
doutor? “É só pra ficar mais suportável, não tem nada demais aqui.” “Mas eu vou
morrer de qualquer jeito, doutor. Não precisa.”, “A gente já falou sobre isso.
Tome os remédios. Continue fazendo as coisas que gosta. Você falou que foi ao
cinema quantas vezes?” “Oito nessa semana.” “Isso é ótimo! E eu quero que você
marque outra consulta daqui a uma semana, certo?” “Obrigado, doutor.”
A
notícia da doença veio cinco anos atrás. Ele fez todos os tratamentos, mas,
então, dois meses atrás descobrira que não tinha mais como: o mal estava nele
todo. Agora já estava bem acostumado à ideia, embora a trouxesse longe de si,
num fato que sabia ser, mas não tocava. Ele não estava morrendo: morreria. Não
veria essa continuidade de ação até que os primeiros órgãos começassem a
falhar. Claro que às vezes surtava. Que homem fica inteiramente tranqüilo com a
morte lhe acenando ali ao lado, na próxima folha do calendário?
Um dia
chegou em casa e o cheiro de boa comida impregnava o ar – sua mulher fazia de
tudo para agradá-lo, mas também se ficasse parada podia entrar em colapso, de
modo que chegava do trabalho e corria para a cozinha e depois limpava o chão
que já estava limpo. Nesse dia, ele olhou pra ela e ela parecia ter vinte anos
de novo. A vida é uma coisa só quando se está morto. Agarrou-a, tirando a
colher de pau da mão dela. Beijou seu pescoço. Ele também tinha vinte anos.
Ela, no entanto, não sentia a volúpia do fim do mundo: depois de duas semanas,
ela estaria viva e com um filho pra cuidar. Se sentia sozinha, com pena dele e
de si. Foi o primeiro dia em que ele pensou em morte de verdade. Não em como
seria o mundo sem ele, isso todo mundo pensa, mas como seria ele sem ele. A
casa inteira tinha ares fúnebres e nem os pezinhos balançantes no sofá, que não
alcançavam o chão, pezinhos que não sabiam de nada, podiam desafiar.
Mas a
verdade é que pessoas na situação dele vivem até que normalmente e às vezes
esquecem que vão morrer. Mais ou menos como o resto delas, sossegadas em sua
falsa sensação de eternidade. Então, quando ele voltou da consulta e seus
pensamentos mórbidos foram despertados, notou com surpresa que as mortes não
são total breu. Havia pessoas cuja morte era medo e outras que morriam sonhando
e que a morte era desconexa. Pessoas cuja morte tinha um cheiro agradável de
gás. Havia mortes que se deixavam ver, como a sua, e tinham cara de prisão e
tribunal. A dele era melhor: era uma morte justa e Deus mesmo a tinha
designado. Havia pessoas que nunca tinham morrido e então passavam a vida
olhando de lado e tentando descobrir a cara de seu final. Ele sentiu-se grato
porque sua morte tinha atmosfera de hospital, um ambiente que o deixava seguro –
que tolice de vivos! Sua morte era asséptica. Era certa. Iria lá na próxima
semana acertar todos os detalhes. Tinha essa semana garantida. Não podia morrer
a qualquer hora. Se mantia vivo na agenda do doutor Ricardo.
Excelente crônica, Mari!!!! Personagem bem desenvolvido e uma trama bem instigante.
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