11 de fevereiro de 2013

Gosto de Cereja


Queridos amigos e familiares,

            Se vocês estiverem lendo esta carta, provavelmente estou morta. Me imaginei agora num caixão aberto, com o corpo pálido e frio e os olhos abertos, estáticos. É uma visão bizarra: a pessoa que vejo no espelho sem a vaidade que a este se guarda. Mas de qualquer jeito, não é assim que estou morta, porque, tal como a vida tem pedaços mórbidos, também a morte vive um pouco, já que os finados praticamente se materializam na frente dos vivos que os lêem. Claro que não sei nada disso ainda: escrevo esta carta em vida, sentada na escrivaninha do quarto com uma caneta que falha sempre. Ou finjo não saber. Sobre o pedaço da morte vivendo cá entre os vivos: ele mora em mim.
            Tenho medo, porém, porque são quase seis da manhã e eu estou no quarto, sozinha com essa carta que quase parece um aval ao Universo para me matar. Por que é que ele quer me levar? Pra ele, tanto faço. Quer levar-nos todos e por isso é que as carnes são frágeis e as esquinas, perigosas. Como a vida é pequena e também tudo!
            Mas já passo longe do assunto que pretendi. Vim com o propósito de me desculpar com os que eu amo... mas são humanos, que importa agora? Que importa mesmo a culpa? E eram desculpas pelas lágrimas ainda por cima, mas ninguém chora. Será delírio meu? De fora, viver e morrer dá no mesmo. Na verdade, alguém chora sim. De fato, várias pessoas choram. Cada indivíduo, vivo ou morto, dessa humanidade chora. Mas choram em uníssono, de modo que ouço um longínquo zunido e é como se ninguém chorasse.
            Nossas dores são tão parecidas – sempre o amor ferido, o plano falho, os pais, a pequenice – que penso às vezes que é nossa obrigação cuidar dos ferimentos dos outros mais do que dos nossos, como se o mundo fosse uma batalha e estivéssemos todos do mesmo lado. Seria um negócio bonito de se ver e se viver, mas daí eu lembro que a gente sempre termina só, à noite, pensando e, por mais que alguém trate da nossa fome e do nosso tesão, ninguém vive do que é o outro. Isso daqui é meu leito de morte.
            Lá fora, a cidade está dando seus primeiros bocejos no escuro. Devo me despedir da cidade? Morro, mas não sou eu que me mato. Quero ficar aqui. Tenho algum carinho pelas ruas amareladas da noite paulistana e me pergunto qual será o tipo de dia que vem lá de trás dos últimos prédios. Ouço um caminhão que passa na rua ao lado. Esses caminhões nunca estão passando na NOSSA rua.
            O dia está se espalhando azulado, acho que o que me mantém viva é o mistério. Tudo dentro da morte é previsível. Aqui tudo é visível! Que seja simplório: eu não poderia morrer sem ver, com esses olhos que a terra há de comer, que clima o dia de amanhã trará. Sinto, ano a ano, as estações se mesclarem. Todos os consolos genéricos sobre sobreviver por causa dos outros são morte. Permaneço pra saber com que velocidade o Brasil erradicará a miséria e entender o segredo dos olhos médio-orientais. Essa noite não.
            Se vocês estiverem lendo esta carta, posso estar viva ou não. Vocês, por sua vez, provavelmente estão morrendo de rir da minha patética de tentativa de trair a existência. A carta vai pra gaveta. Abandono-os porque faz-se esbranquiçada manhã.

Acho que vai chover,
Badii.

4 de fevereiro de 2013

Depois de tanto verbo

                Recitava vagarosamente enquanto escrevia. “Tomar um com-pri-mido a cada oito horas.” O homem do outro lado da mesa parecia em transe. Se fixasse seu olhar em alguma coisa por alguns segundos sentia que podia vomitar. “Mas pra que esses remédios, doutor?” O médico tirou os olhos do papel e enrugou a testa, com o ar paternal e divino que os médicos conseguem ter quando lhe entregam notícias de você mesmo. Oi, tudo bem?  Tudo e comigo, doutor? “É só pra ficar mais suportável, não tem nada demais aqui.” “Mas eu vou morrer de qualquer jeito, doutor. Não precisa.”, “A gente já falou sobre isso. Tome os remédios. Continue fazendo as coisas que gosta. Você falou que foi ao cinema quantas vezes?” “Oito nessa semana.” “Isso é ótimo! E eu quero que você marque outra consulta daqui a uma semana, certo?” “Obrigado, doutor.”
                A notícia da doença veio cinco anos atrás. Ele fez todos os tratamentos, mas, então, dois meses atrás descobrira que não tinha mais como: o mal estava nele todo. Agora já estava bem acostumado à ideia, embora a trouxesse longe de si, num fato que sabia ser, mas não tocava. Ele não estava morrendo: morreria. Não veria essa continuidade de ação até que os primeiros órgãos começassem a falhar. Claro que às vezes surtava. Que homem fica inteiramente tranqüilo com a morte lhe acenando ali ao lado, na próxima folha do calendário?
                Um dia chegou em casa e o cheiro de boa comida impregnava o ar – sua mulher fazia de tudo para agradá-lo, mas também se ficasse parada podia entrar em colapso, de modo que chegava do trabalho e corria para a cozinha e depois limpava o chão que já estava limpo. Nesse dia, ele olhou pra ela e ela parecia ter vinte anos de novo. A vida é uma coisa só quando se está morto. Agarrou-a, tirando a colher de pau da mão dela. Beijou seu pescoço. Ele também tinha vinte anos. Ela, no entanto, não sentia a volúpia do fim do mundo: depois de duas semanas, ela estaria viva e com um filho pra cuidar. Se sentia sozinha, com pena dele e de si. Foi o primeiro dia em que ele pensou em morte de verdade. Não em como seria o mundo sem ele, isso todo mundo pensa, mas como seria ele sem ele. A casa inteira tinha ares fúnebres e nem os pezinhos balançantes no sofá, que não alcançavam o chão, pezinhos que não sabiam de nada, podiam desafiar.
                Mas a verdade é que pessoas na situação dele vivem até que normalmente e às vezes esquecem que vão morrer. Mais ou menos como o resto delas, sossegadas em sua falsa sensação de eternidade. Então, quando ele voltou da consulta e seus pensamentos mórbidos foram despertados, notou com surpresa que as mortes não são total breu. Havia pessoas cuja morte era medo e outras que morriam sonhando e que a morte era desconexa. Pessoas cuja morte tinha um cheiro agradável de gás. Havia mortes que se deixavam ver, como a sua, e tinham cara de prisão e tribunal. A dele era melhor: era uma morte justa e Deus mesmo a tinha designado. Havia pessoas que nunca tinham morrido e então passavam a vida olhando de lado e tentando descobrir a cara de seu final. Ele sentiu-se grato porque sua morte tinha atmosfera de hospital, um ambiente que o deixava seguro – que tolice de vivos! Sua morte era asséptica. Era certa. Iria lá na próxima semana acertar todos os detalhes. Tinha essa semana garantida. Não podia morrer a qualquer hora. Se mantia vivo na agenda do doutor Ricardo.