4 de fevereiro de 2013

Depois de tanto verbo

                Recitava vagarosamente enquanto escrevia. “Tomar um com-pri-mido a cada oito horas.” O homem do outro lado da mesa parecia em transe. Se fixasse seu olhar em alguma coisa por alguns segundos sentia que podia vomitar. “Mas pra que esses remédios, doutor?” O médico tirou os olhos do papel e enrugou a testa, com o ar paternal e divino que os médicos conseguem ter quando lhe entregam notícias de você mesmo. Oi, tudo bem?  Tudo e comigo, doutor? “É só pra ficar mais suportável, não tem nada demais aqui.” “Mas eu vou morrer de qualquer jeito, doutor. Não precisa.”, “A gente já falou sobre isso. Tome os remédios. Continue fazendo as coisas que gosta. Você falou que foi ao cinema quantas vezes?” “Oito nessa semana.” “Isso é ótimo! E eu quero que você marque outra consulta daqui a uma semana, certo?” “Obrigado, doutor.”
                A notícia da doença veio cinco anos atrás. Ele fez todos os tratamentos, mas, então, dois meses atrás descobrira que não tinha mais como: o mal estava nele todo. Agora já estava bem acostumado à ideia, embora a trouxesse longe de si, num fato que sabia ser, mas não tocava. Ele não estava morrendo: morreria. Não veria essa continuidade de ação até que os primeiros órgãos começassem a falhar. Claro que às vezes surtava. Que homem fica inteiramente tranqüilo com a morte lhe acenando ali ao lado, na próxima folha do calendário?
                Um dia chegou em casa e o cheiro de boa comida impregnava o ar – sua mulher fazia de tudo para agradá-lo, mas também se ficasse parada podia entrar em colapso, de modo que chegava do trabalho e corria para a cozinha e depois limpava o chão que já estava limpo. Nesse dia, ele olhou pra ela e ela parecia ter vinte anos de novo. A vida é uma coisa só quando se está morto. Agarrou-a, tirando a colher de pau da mão dela. Beijou seu pescoço. Ele também tinha vinte anos. Ela, no entanto, não sentia a volúpia do fim do mundo: depois de duas semanas, ela estaria viva e com um filho pra cuidar. Se sentia sozinha, com pena dele e de si. Foi o primeiro dia em que ele pensou em morte de verdade. Não em como seria o mundo sem ele, isso todo mundo pensa, mas como seria ele sem ele. A casa inteira tinha ares fúnebres e nem os pezinhos balançantes no sofá, que não alcançavam o chão, pezinhos que não sabiam de nada, podiam desafiar.
                Mas a verdade é que pessoas na situação dele vivem até que normalmente e às vezes esquecem que vão morrer. Mais ou menos como o resto delas, sossegadas em sua falsa sensação de eternidade. Então, quando ele voltou da consulta e seus pensamentos mórbidos foram despertados, notou com surpresa que as mortes não são total breu. Havia pessoas cuja morte era medo e outras que morriam sonhando e que a morte era desconexa. Pessoas cuja morte tinha um cheiro agradável de gás. Havia mortes que se deixavam ver, como a sua, e tinham cara de prisão e tribunal. A dele era melhor: era uma morte justa e Deus mesmo a tinha designado. Havia pessoas que nunca tinham morrido e então passavam a vida olhando de lado e tentando descobrir a cara de seu final. Ele sentiu-se grato porque sua morte tinha atmosfera de hospital, um ambiente que o deixava seguro – que tolice de vivos! Sua morte era asséptica. Era certa. Iria lá na próxima semana acertar todos os detalhes. Tinha essa semana garantida. Não podia morrer a qualquer hora. Se mantia vivo na agenda do doutor Ricardo.

Um comentário:

  1. Excelente crônica, Mari!!!! Personagem bem desenvolvido e uma trama bem instigante.

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