31 de agosto de 2011

A segunda mudança descrita durante a terceira

Conservam-se nítidas como na manhã seguinte, não a racionalização, mas as próprias lembranças da sensação que me tomou naquela noite. A começar pela falta de normalidade do dia que só fez coroar a estranheza da semana inteira. Todos os pertences em caixas e o armário que guardava segredos em todos os cantos, desmontado. Os segredos brutalmente despojados se grudando em mim como última esperança. Fui ao quarto que choramingava uns adesivos na janela e desenhos na parede. O chão tinha ainda seu taco solto com o buraco imundo.
Tomei um banho e o apartamento debochou carinhosamente do nosso grito de liberdade: se fazia necessário. A atmosfera toda guardava, por trás da nostalgia óbvia, um tom de absurdo como se tudo fosse um sonho esquisito. Ironicamente, a sala chamou não pelos móveis, mas pela TV em cima de um caixote cheio de comidas, que se assistia de um colchão, porque acho que as coisas tendem a se parecer com seu princípio quando estão para acabar.
E entendo: o que me faltou na época foi saber que era assim, feliz, porque parecia o começo e, no entanto, triste pelas diferenças. Com um companheiro a menos (e um a mais), rumei para o começo do novo ciclo. Já tendo quarto e cama, deitei do dia de trabalho e adaptação. Mais cedo, pude jurar que viveria de nescafé e com uma roupa incomum que tirei do armário-mala coincidentemente. Me enganei. De qualquer forma, agora já usava pijama e, deitada, olhando pra cima, respirei o ar quente do final de um verão. A janela aberta, ouvi cigarras e uma mariposa enorme pousou calmamente na parede. Entendi, então; por compensação da automaticidade, ganhei uma casa viva.

15 de agosto de 2011

Saudosismo

Uma casa cheia de oportunidades a longo prazo, um prato que é uma tampa de plástico com brownie do Pão de Açúcar, a internet ainda; mas a vontade de fazer tudo ao mesmo tempo: assistir tv com cobertor e pipoca e universal channel, msn pra fingir companhia e refrigerante e meia-luz, ler na cama com o abajur e um copo de leite, saltar pela janela, pular o muro, sair pelo portão afora, cozinhar algo inusitado, nunca fiz pão aqui, e limpar. E limpar.
Tornar seca a pele debaixo do chuveiro quente, agora na luz forte - mas que ironia! que esse banheiro sempre foi escuro. Chamar o pai, me leva no shopping!, na casa da Nani!, me leva pra escola hoje por favor que eu 'tô cansada?, almoçar na casa da vó e voltar discutindo - a noite é quase madrugada pela cor, a barriga vai lotada e não se consegue adiar mais o percurso pela João Dias, mas se quer conversar e conversar.
A verdade é que quatro quilômetros pra cá ou pra lá não muda a distância quase. Muda o bairro, muda a facilidade, mas é tão pertinho; muda a vida, a casa, a rotina, a facilidade, mas é logo ali; muda que tem que esperar elevador e andar até o ponto, muda que tem clube, piscina, que o quarto é menor. Não importa: muda.
Uma saudosista cheia de oportunidades a longo prazo, mas que dispensa todas elas e cimenta a mente. A isso me resumo.

11 de agosto de 2011

Sobre a sorte e afins

Mudou o nome pela numerologia.
No RG, Marina. Pra sua mãe, Marina. Pro seu pai, escolhi o nome com tanto carinho, poxa! No canto do quadro e na parede do quarto, Marinna. O nome pelo qual atende é o mesmo. Na carne, nada há. O cérebro racionalizou em partes: sou Marina até Marinna ser. Nos olhos, ainda mar e a solidão que ene nenhum tira.
Diz que dá sorte, né? Reduzamo-nos a animais humanos. De humano, nome é parte oficial. Reduzamo-nos a analfabetos. Ainda que errada, a língua é parte essencial. Reduzamo-nos àquele humano sozinho que nasceu longe e pensa em fotos. Sociedade humana, a palavra é parte grande.
Marinna sem nome sem nada compra a sorte, que não se alia à carne, e que disse o jornal, a vizinha, a tevê, o professor de arte, a numeróloga - todos sem nome sem nada - e vende ao pai.


PS.: "Eles eram muitos cavalos" pra soltar a escrita.

4 de agosto de 2011

Pagamento pela justiça nata

Cego da dor da morte,
brande a arma o irmão mais próximo.
Não porque lhe traria à vida
ou porque assim quisesse.

Vingava o sangue que, em si, já era vingança
e, indiretamente, vingava um remoto antepassado,
sabendo que a bala que saísse de seu cano
logo perfuraria seu corpo também.

Vagando pela neve branca e luminosa,
viu-o recortado contra o céu albanês
Não foi necessária muita empatia para saber
que o homem era seu inimigo, seu irmão e ele mesmo.

Sem pensar duas vezes, carregou sua espingarda
E, decidido a derramar sangue de um assassino, atirou.
Suas mãos moles derrubaram a arma quente.
E a neve, agora vermelho-aguado, o recebeu.

O inimigo aproximou-se com o barulho
Grato, admirou o sorriso no rosto morto
E, por causa de uma dessas ironias que ocorrem em poemas,
a arma, rebatendo numa pedra, apoiou-se em sua cabeça.

PS.: Abril Despedaçado, mais uma vez.