27 de abril de 2012

Vozes

Estava lá o corpo estendido no chão.
Dezenove horas. À beira de uma enorme avenida.
Ao lado, parou um ônibus em cuja janela punham-se os rostos assustados. "Abre a porta!", "Tem um corpo!", "É um homem!", "É um velho!", "Quem será?", "Está morto!", "Está morto?", "ESTÁ MORTO!".
E em cada uma das cabecinhas um silencioso apreço pelo conflito e um agradecimento ao drama pelo fim-de-tarde tirado da normalidade; em cada uma das cabecinhas um romance mais empolgante do que o outro. "Coitado!", "Coitado nada!", "É caloteiro?", "Não o conheço.", "É Zé Ninguém!", "Foi por dinheiro!", "Foi por amor...", "Ouvi dizer...", "...que nessa área...", "...sempre acontece...", "...umas coisas dessas."
Nada podem as cabeças em face de um corpo morto. Se não fosse esse aspecto humano, já era mato desse da calçada.

"Mexeu a boca!", "Mexeu a boca!", "Está bem vivo!", "Mas aí deitado?", "E a essa hora?", "Foi a cachaça.", "Foi a cachaça.", "É, a cachaça.", "Sempre a cachaça!", "Quem mandou beber?", "Se é cachaça, então a sarjeta...", "... é o lugar dele mesmo!", "Fechem a porta!", "Siga viagem!".

A vida é chata.

21 de abril de 2012

Maria e a canção

Quando escapava a voz-menina da boca-maria, sussurrava juntinho a mocidade, convocando os apreciadores de delicadezas. O fiozinho de voz, feito fiozinho de água, corria, embora as pedras se pusessem no caminho. Escorria e vazava por onde queria ir: era forte. Era forte e, por isso, acabemos aqui a metáfora desse riachinho, que parou numa depressão e virou pocinha, e sigamos em frente com Maria que inundou um povo, matou a sede duns corações e regou uma arvorezinha pitangueira.

Maria não continha obra e nem dizia história mundial, era pequena e tinha um sorriso legal. O que dizia (e eu riria) era tão só de Maria, tão pequeno, tão indivíduo qu'eu riria, se eu não amasse Maria.
Mas era tanta despretensão, tanto coração, tanta canção (tinha, sim, a mão de "João") que Maria criou uma nova conexão: quando era sobre si que Maria escrevia, por humana interrelação, escrevia toda a multidão.

7 de abril de 2012

Carinho

é uma dor bem de levinho.

Lux

Algumas histórias tapam o buraco de eu nem mesmo ser.

Toda manhã acordo em velocidade certa e nas cores certas, bocejo e as orelhas tremelicam internamente, vibram graves, mas só eu consigo ouvir.

Lembro do meu amor contra o verde chroma-key: esta tarde traz aroma urbano e, embora eu o coloque contra o cinza-paulistano, ele nada fará sem ordens da direção. Há que abrir a porta, arrastá-lo pela mão, beijá-lo sem música, deitar-lhe a cabeça nas pernas só porque é bom e nada mais. Regra: destrua os cacos, esmague as improvisações e toda surpresa renegue com a cara cínica e impassível.

E eu sou o bom moço, o policial corrupto, a atriz megalomaníaca, a ingênua que beija, o lunático e sua paixão impossível, as esposas, todos os filhos coadjuvantes, todos os cachorros e todas as cigarras ilustrando a noite.

Os olhos secos de luz, a subjetiva e, parabéns, você ganhou uma vida! Pura adrenalina e, sem exageros, afirmo que até mesmo a oxitocina se manifesta.

Mas então, se enfia as mãos nos bolsos, há os trocados necessários para uma passagem de ônibus e se tem certeza do lugar aonde vai, o itinerário, o horário e o calendário (as incertezas meteu no outro bolso). É uma das características da luz entregar seu provedor e dessa vez ele é violento: dispara contra os olhos de pupilas dilatadas de casa, enfiando-lhes canal abaixo claridade de puro sol.

4 de abril de 2012

As frestas

Estão pra sempre
e são e sendo
estão sendo. E tendo
em si a eternidade
seja lá em ideia e pensamento
seja em átomo, molécula ou elemento.
As noções perduram os oitenta anos,
se aprimoraram e se afinam,
não mais do que oitenta anos.
Porque os homens,
carregados de sua razão,
trazendo suas cordas vocais
e seu belo vocabulário milenar,
não sabem falar.
Não falam.
Não falam mais do que as palavras podem.

E aí o tempo malandro,
inimigo eterno do empirismo,
dita que tudo leva tempo
(ele adora se meter no meio
entre um compasso e outro
entre um amante e outro
entre os limites do corpo).
O começo é invisível.
O mundo começou,
a onda começou,
o vento começou,
o homem começou,
você começou bilhões de anos atrás.
de você.

Há os crentes esperançosos,
que confiam na palavra, sim,
mas vêm verdade nas coisas não-ditas,
não-pensadas, no acaso
e nos instintos dum corpo com vontades,
acreditam no que não entra em contratos,
no não-oficial tremelicar de pestanas,
na mão que acarinha sem saber por quê,
no soco-reflexo que salvou a vida,
(mas ninguém parece ver
essa sobrevida da vida forte),
como os crentes,
como eu.