11 de setembro de 2012

Bruto

    Não saberia dizer a qual frequência os dois haviam se adaptado. Fossem eles números, seriam x (talvez ela pudesse fazer uma estimativa dele, em função da própria imaginação, mas) e y a essas duas incógnitas, não saberia atribuir um divisor comum. Não que fosse adepta dos números (as metáforas são todas minhas). Tampouco o era das palavras e, por isso, se contentava com essa ausência de frases explicativas. O kitsch dos relacionamentos pedia os verbos, determinava que se dissesse o que é e o que significa o espaço ou a falta de espaço entre duas pessoas, mas o que faria ela se nada sabia dizer que fosse análise e o que dizia era sempre parte do contexto. Destes tantos, o exemplo do espaço lhe vestia melhor: era um ser físico.
    A primeira vez que K... roubou o vão entre os dois foi simples como um conduzí-la pela cintura, o que tinha, como objetivo declarado, levá-la à sala do chefe do escritório, para uma conversa breve. Ela ainda nova, embora velha pra descoberta, em casa postou-se frente à sua imagem refletida e, nua, achou-se de uma brutalidade bela; seus seios eram muito fortes para as mãos amáveis de um homem. Por ser livre das pré-concepções que se fazem de tanta frase calcificada, misturaram-se os dois gêneros com harmonia, e ela perguntando-se cínica qual era mesmo a diferença. Devota dos sólidos que era, achou que poderia andar na rua exibindo os dois peitos feito fazem os homens nos verões. Achou que poderia até acariciar o tórax e, somando e não ignorando a presença dos dois balançantes protetores, franzir a testa e olhar outros corpos. Sentiu-se triste por nunca tê-lo pensado antes.
    Nos cumprimentos matinais , vendo o rosto sempre calmo de K..., sentiu raiva por ele tê-la feito mulherzinha num toque tão casual. Sentiu sua virilidade invadida, fora traída por seu próprio corpo que desmantelava se dando a ele. Decidida a ser de si somente, no entanto, foi que aceitou o primeiro convite dele para tomarem alguma coisa. Se era sua própria dona, não tinha porque temer as mãos quentes dele por perto. Era um desafio pro corpo traíra. Aceitou, depois, o segundo convite, o terceiro, o quarto...
    Um dia, ele se muniu de coragem para convidá-la a pertencer oficialmente a ele e ele, pela lógica, a ela, num desses acordos verbais. Ela se ofendeu, bradou que não com repulsa e, à noite, foi perguntar ao corpo. Tocou a barriga, cuja foto cheia de luz com uma pontinha de umbigo-breu, já conhecia bem. Viajou questionando os seios-armadura. Virou o pescoço exibindo o esternocleidomastóideo pro escuro e encontrou, enfim, o mamilo. Seu corpo enrijeceu: o mamilo era uma ofensa, feita em botãozinho avermelhado. Nem botão nem vermelho. Tudo diminutivo e sutil, quanta ousadia! O mamilo era a prova de que pertencia a K..., ela nem sabia como. Era a constatação de que, se não iria, uma criança pelo menos deveria um dia depender dela por aquela extremidade delicada do forte peitoril que aceitara como de amazona. O mamilo era um deboche.
    E, nesse movimento, viu o deboche em tudo o que K... fazia: quando lhe puxava pela cintura, lhe afastava os cabelos e se espreitava-lhe os gestos duros, apoderando-se deles para imitá-la e argumentava a favor da igualdade dos papeis dos dois na relação, quando, por isso, ela batia nele e ele ria ou quando disputavam forças e ela perdia humilhada, com os braços presos e o pescoço devorado. Era tudo um deboche.
    Tomou-lhe a vergonha. Gostaria que fosse tirada dele toda atração física que sentia por ela, mas não sabia onde a guardava para arrancá-la ela mesma. Estavam os dois num ringue, ambos igualmente descamisados. A briga não exigia que batesse nele, isso já fizera, mas que ele, por sua vez, quebrasse seu nariz, lhe deixasse hematomas nos olhos e, assim, insultasse sua força. Nunca exigia um deboche. Nunca esse riso que ecoava, deixando-o maior.
    Ele se aproximou violento, tocou seu seio com carinho, ironizando a sensibilidade do bico delicado, o que lançou nela uma dor num lugar novo. Nesse lugar, que desenhou no peito, mas podia não sê-lo, o seio era mais arma que escudo e o corpo, mais corpo e menos símbolo.
    Acordou e ligou pra ele. Queria o consolo de dar a ele o colo pelo sonho-insulto que tivera. Ele que soluçasse pelo pesadelo dela! Decerto o acalmaria.

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