5 de janeiro de 2010

Do sétimo andar

Voce fugiu. Alimento, dese então, uma esperança de te reencontrar. Peguei uma foto sua, a mais bonita, você olhava pra mim. Fiz dessa foto um anúncio e colei em todos os lugares possíveis. Acho que ninguém viu.
Lembro bem de te deixar sair sozinho todas as manhãs, para tomar café na padaria. Você gostava dessa liberdade. Era o máximo que eu podia permitir e você parecia entender. Se sentia independente com aquilo. Mas eu te olhava, me debruçando na janela, alto aqui do sétimo andar, como pra me assegurar que tudo ocorreria normalmente. Nao que eu não confiasse em você, eu só sabia que havia coisas que não estavam sob seu controle. Você conversava com seus amigos, até mesmo com os que ninguém ouvia.
Eu quis te proteger. Te proteger do perigo maior: você. Eu nunca explicava exatamente. Era como o que se omite de crianças por medo de assustá-las. Mas talvez você lidasse melhor do que eu com isso. Não o pensei na época. Eu não contava não por medo da sua reação, mas por medo da minha, de ter que encarar - finalmente - como realidade. Mas no seu caso era o tempo passar, confortava-me o doutor.
Parece que foi ontem que eu fiz aquele chá, que você adorava, de habu, que te curou da tosse e do chulé. O gosto era bom, na verdade. Carinho é o melhor placebo. Funcionou com você. Eu devia preparar um chá de habu pra mim mesmo agora, pra me confortar, mas não teria o mesmo gosto fraterno, teria gosto de saudade.
Saudade porque teve uma hora que não deu mais. Não deu mais pra você e, confesso tristemente, nao deu mais pra mim. Pessoas desconhecidas sussurravam, gritavam e ordenavam suas próprias vontades dentro da sua cabeça. Diziam só o que você queria ouvir. Você passou a ouví-las mais do que a mim. Elas te confortavam, mas te faziam mal. Foi difícil ter de te levar àquele lugar: clínica, hospício, manicômio - como é que hoje se diz? Você não quis ficar.
Seus amigos, que eu nunca tinha visto, passaram a protagonizar alguns dos meus mais terriveis sonhos. Seus poucos amigos reais - o padeiro, o porteiro, o vizinho da direita - perguntaram por você. Queriam te reencontrar também e até me ajudaram com aqueles vãos anúncios, estampados com a sua foto mais bonita, olhando pra mim.
E se eu numa esquina qualquer te vir, será que você vai fugir? Se for eu vou... se for eu vou correr!

PS.: Quase obviamente baseado em "Do sétimo andar", Los Hermanos.

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