8 de fevereiro de 2010

Carta a Syme (que nunca seria sequer enviada)

Pesa-me na consciência a minha capacidade de te esquecer assim tão rapidamente. Pesa o fato de você nunca ter sequer existido, exceto por talvez uma fagulha de pensamento, de lembrança, mero sonho pessoal. E pesa-me ainda o fato de que, talvez por conta desse texto, provavelmente dentro de alguns dias eu não mais existirei e nunca terei existido. Não terei nome, nem identidade, rosto e ninguém lembrará que um dia eu habitei esse lugar. Mas eu me lembro.
Lembro do seu jeito de deslumbrar-se com o seu ofício, o que me causava certa repúdia; lembro dos olhos brilhantes quando você o mencionava; lembro da sua inteligência desperdiçada em toda a bitolação do Partido; lembro-me dos seus óculos. Da cor dos olhos não me lembro mais, tampouco da forma do rosto, o que passariam desapercebidos diante da conquista que é conseguir te saber, considerando a situação em que estamos.
Confesso que, apesar dos questionamentos serem concretos na minha cabeça, pensei, por vezes, não haver saída. Isso até encontrá-la: Júlia! Camarada, ela era a saída que eu procurava. Uns dez ou quinze - não se sabe ao certo - anos a menos do que eu. Alva, jovem, inteligente, o rosto não exalava beleza, confesso, mas os seios firmes, a dedicação, a sensualidade compensavam tudo. Talvez pela fitinha vermelha na cintura (que simbolizava, falsamente, o zelo pela Liga Juvenil Anti-Sexo), pela rebeldia inconsequente ou simplesmente por encontrar alguém pra dividir meus sentimentos anti-Grande Irmão, vi nela a oportunidade.
Não sei o porquê dessa carta. Sinto estar escrevendo ao nada. Escrevo a alguém que nunca nem sequer existiu (espero não estar sendo convencido dessa ideia). Escrevo àquela fagulha de pensamento, de lembrança, ao mero sonho pessoal que és. Escrevo à oportunidade que você dispensou, optando ou sem perceber as alternativas, ao seguir fielmente às ordens deles: a oportunidade de pensar, na qual, creio eu, você seria muito bem sucedido.
Encerro sentindo-me tolo por concluir - e agora me assegurar - que esse papel não chegará às suas mãos. Provavelmente acabará escondido dentro de um livro velho para a posterioridade. Posterioridade esta que não deve durar mais que alguns dias, até que tudo seja refeito novamente e, por fim, eu e o que resta de ti sejamos vaporizados.

Com pesar, do Camarada Winston.

PS.: Ainda sujeito a mudanças.
PS.: Feito durante o capítulo 16, portanto, com informações só até tal ponto. :)

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