4 de outubro de 2011

Criatura

-Venho descobrindo que escrever, pintar, gravar, musicar é um exercício de registro. Ok, eu já sabia, mas eu tinha certeza que era feito para que os outros soubessem o que eu penso, era uma tentativa literária de conseguir aliados em uns e outros sentimentos. E eu prestei atenção na visão e em como ela mudava com o tempo. O tempo, não: os acontecimentos, as memórias e os silêncios. Os silêncios, eu resolvi não mais. Escrevi e dessa vez eu sabia que era pra mim. Contar uma história perdeu a importância: seria a minha e eu sabia. Apresentação de personagem: seria eu e eu sabia.
-Sete horas da manhã. São Paulo, capital. Um escritor levanta de sua cama e vai arrastando os pés para o banheiro. Mexe nos espessos cabelos pretos, que ainda guardavam mechas queimadas de sol do último verão. Lava o rosto, faz xixi, de olhos fechados vai à sala. Não toma café, nunca tomou. Mentira, já tomou, mas não tem como hábito. Tem muitos poucos hábitos, na verdade: os higiênicos, os mais obrigados. Senta-se e escreve, deste texto, o primeiro parágrafo.
Como sempre, está atrasado e não dormiu bem, então bota a roupa de viver e, com o caderno na mão, sai. Nada de inspiração: o escritor vai ver o concreto do mundo, vai entender sobre como as pessoas são, o que é o comunismo, aprende a andar de ônibus, a ouvir música e se desanima, pois é poeta e é egocêntrico (pleonasmo?) e só quer escrever de si.
-Abre a página do blog - "Nova postagem", precisa escrever pela cobrança de todos os lados, precisa botar pra fora. Folheia os cadernos e nenhum texto alia qualidade e jovialidade. Começa com "Descobri que...", mas é muito certeiro e tudo na pra ela ou é na metade ou é compartilhado com mais gente, porque é uma dependente química de gente. Condiciona pessoas a atividades, a lugares, a momentos e sofre de abstinência quando não toma a dose necessária. Prefere "Venho descobrindo...", pouco prepotente, socrático e serve. Vai e começa a se escrever.
-E começa a me escrever. Quem diabos ele é pra se dar ao direito de sair do papel? Ah, mas que poesia bonita e falsa é essa cujos personagens não vivem: estão na minha mente, estão na minha carne, nos outros, no verso - que é muito mais do que tinta em papel. Usa da sua maior arma: as palavras. NÃO! Cale a boca! Você sabe muito de mim!
-Acima de tudo, ela é uma garota. Guarda uma paixão meio impossível, mas não porque é imaginária como as de criança. É impossível porque ele é bonito demais, legal demais, inteligente demais. Ah, ela é uma garota, sim! Só uma garotinha! Quer se dizer super inteligente, não é? Porque só eu acho-a bonita e só vejo graça nela, teve de fugir pro campo intelectual. Todo mundo procura a coisa na qual é melhor, não é?
-O escritor vem cheio de segurança porque não tem nada a perder.
-Ah, a garotinha é inteligente mesmo, eu admito. Não fique brava. E linda ela é, com o sorriso dela e o cabelo meio bagunçadinho. E temos uma coisa em comum: eu escrevo e ela também, criamos assim nosso universo. O código: língua portuguesa. O canal: ela na caderno e eu por ela.
-Você por mim, então defino que, por pudor, mas com um largo sorriso na cara, esse é o último ponto final -> .
-(Ela acha que pode me controlar, mas sou reticente pra sempre.)

4 comentários:

  1. E ainda diz que está escrevendo ruim.... Olha esse texto, que maravilha!!!!

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  2. ahaha obrigada, Ka!
    Mas é uma decadência, comparativamente.

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  3. uau, acho que de todos que li até agora esse entra facilmente entre os melhores. Como adoro metalinguagem quando bem usada, como é aqui. E no final há uma ironia disfarçada, acho eu. Muito bom mesmo.

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    1. Já é egocentrismo escrever sobre si.
      Mas e escrever sobre dois sis dialogando e brigando sobre si mesmos? hahaha
      E dá-lhe ironia! :)

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