13 de maio de 2012

Unos como máquinas do tempo

   No escritório ridiculamente subdividido, no sétimo andar do cinzento prédio da Pinto Fernandes Construções, atendendo e fazendo telefonemas de média importância, Rogério juntou dinheiro o bastante para comprar seu primeiro carro. Não, não... não era um carrão nem nada, mas dava pra ir aos poucos lugares que costumava frequentar. Foi num bar que o conheci. Alguns amigos trocaram seu nome pelo meu e nós dois trocamos apertos de mão. Nessa época, a cabeça de Rogério já tinha rodado alguns quilômetros e ele me dizia coisas que me amedrontavam. "Se houvesse pra onde ir, eu iria." Rogério confiou em mim, nos tornamos amigos em menos de uma noite.
   Passamos a conversar todos os dias. Ele me ligava ou nos encontrávamos ao fim do expediente e eu lhe dava boas esperanças do que seria amanhã. Num desses encontros, bêbado, ele me confessou o que todo bêbado alguma hora confessa. "Só que ela nunca vai gostar de mim..." e daí eu dei uns conselhos que seriam esquecidos na manhã seguinte. Noutro dia, me encontrou na rua, buzinou de dentro daquele carro e disse "Estou indo.", antes que eu perguntasse pra onde, ele deu uma arrancada, tomou o rumo contrário e disse "Nos vemos por aí!". A moça no banco do passageiro pareceu realmente surpresa.
   Essa foi a última vez que tive qualquer notícia de Rogério... até esta manhã. Eu ainda dormia quando o telefone me trouxe uma voz de mulher desconhecida e cansada, perguntando se eu gostaria de encontrá-la. Porque hoje é sábado e eu não tinha nenhum afazer, topei e fomos nos ver num café perto de casa. Ao apertar minha mão, ela perguntou correndo se eu queria saber de toda a história de Roger e dois pensamentos vieram, um ao pé do outro: "Roger? Rogério?" e "Como essa moça sabe quem sou?". De qualquer forma, aquiesci sentando e a olhando com interesse. Respondendo minha pergunta, ela começou a história "Na primeira semana, teve essa loucura de que se chamava Roger e insistia em me chamar de Mary ou algo assim. Achei que ele delirava, porque falava realmente sério." Tudo nessa narrativa indicaria que ao fundo ouvíamos um negão tocar seu trompete e que a moça fumaria um cigarro atrás do outro e me contaria tudo displicentemente, mas não. Muito séria, ela continuou.
   Roger a havia buscado em sua casa, declarado-se e a colocado no carro e dado partida, tudo em menos de vinte minutos. Ela divertida com a aventura, topou. Achou que iam até a esquina ou até o Parque do Ibirapuera, mas foram parar na estrada. Sem parar o carro, a levou prum lugar realmente longe que ela não sabia onde era. "Sabe, no começo era bem divertido, dormíamos no carro e fazíamos sexo no acostamento e ainda tínhamos algum dinheiro pra comida. Até a brincadeira dos nomes americanos eu topei." Os dois encontravam figuras brasileiras que não tinham onde ir, malandros, prostitutas, crianças abandonadas... e era bonito ver tanto verde para todo lado. Ela me contou que a sensação de liberdade a mantinha presa a Rogério, tal como as cordas que às vezes ele punha em volta de seus punhos.
   Numa noite, ela conseguiu ligar pra sua mãe, contou que estava bem e bem longe, que não era pra chamar a polícia e que sabia que já tinha perdido o emprego. Desligou chorando e se despediu dele também, dizendo que não podia mais voltar pra casa e acabariam se encontrando onde todos os caminhos levam, Denver. Eu não sabia onde era isso, mas resolvi não atrapalhar a história. "De fato, nos reencontramos, mas não foi em Denver, não... foi para os lados de Itaquaquecetuba, eu, ali na beira, sempre era confundida com prostituta ou mendiga, tsc... vi seu Uno correndo lá longe na estrada e ele me viu também." Transaram como loucos no banco de trás aquela noite e foi quando ele a contou que sentia minha falta, que achava que eu seria uma boa Sal Paradise para o casal Dean e Marylou que eles faziam. Nesses termos, eu é que coloco agora.
   Nisso já havia um ano passado, ela me contou. Certa noite, eles pertinho de São Paulo, foram parados por uma blitz... não a primeira, é claro, mas dessa vez ele havia se embebedado. Viram as luzes de longe e, sabendo que seriam pegos, pararam o carro e desceram no acostamento. O combinado era esperar ali até a manhã seguinte, até que a blitz fosse embora. Ela não sabe o porquê, disse indignada e agora chorando, "mas ele entrou no carro, posicionou-o na contramão e foi em direção ao fluxo...". Ela parou de falar por causa dos soluços, mas eu já tinha entendido. "Nada pode um cara que viajou no tempo nessas estradas de hoje em dia..."
   Rápida como aprendeu a ser, Mary deixou o convite do velório ao lado da xícara vazia e se levantou dizendo "Nice to meet you, see you 'round", mascando um fio de palha imaginário. E se assustou antes que eu fizesse o mesmo.

2 comentários:

  1. Saudades de ler esses teus contos. Esse está sensacional, como sempre, Mari! :)

    ResponderExcluir