27 de maio de 2012

Se José me permitir...

A mulher do médico, tendo à vista a vista de outro, nos olhos não mais estáticos e inutilizados do primeiro cego, título que não mais lhe cabia, apoiou todos os músculos na poltrona e levantou somente o braço. Dispensou a voz que era sua identidade, não precisava mais dela. A mão estendida à janela afora era quem falava, como se lhe apresentasse pela primeira vez e como se aqueles olhos sempre tivessem sido cegos. Mesmo que recheado de lixo e nojento e cruel, aquilo ali havia sido só dela por tanto tempo que se acostumara a este tipo cá de solidão. Quando da boca que primeiro disse Estou cego, saiu a até então inalcançável frase Vejo, a mulher do médico juntou as forças que lhe restavam e todo o sentimento materno que havia ganhado por essa gestação cega e deu ao primeiro cego o mundo, Ei-lo! Então, manifestou-se a vaidade à qual ela sempre teve direito, E eis a prova de que eu dizia a verdade sobre como ele é.

PS.: Só um pequeno exercício de escrita relacionado ao Ensaio.

25 de maio de 2012

A mulher do ponto de ônibus

Rubra tinta colore os lábios negros
Tão mal-contornados quanto uma criança faria
És uma alucinação disfarçada de cidadania
Mas só o veem quem todo dia atesta.

Quebramos juntas os preconceitos
(mesmo que extremando-os contrários)
e eu, por pena, finjo não ser rainha
deste mundo em que você chegou antes.

E sou mesquinha escritora
fazendo de personagem quem
nem imagina ler-me um dia.

E tu, sempre a mesma roupa,
sempre a mesma cara
e trazendo nas mãos
sempre o mesmo gesto repetitivo.
O gesto teatralmente encabulado com os pés,
O carinho de mãe caricaturado.
Feito Macabéa, que foi esquecida e é cheia de coisas.
(Na mesma sessão diária matinal)

Ou és personagem
ou o mundo está me zoando.

20 de maio de 2012

O segredo dos seus olhos (testando a máquina)


(Teste da máquina com fita nova. As ondinhas devem-se ao papel que não estava reto e a falta de tils deve-se à licença poética adicionada da tecla quebrada.)

De um dos lados da boemia

    Trancou a porta atrás de si. Antes de andar, um último relance à sua volta: a rua deserta. O pouco que era visível devia-se à fraca luz amarela dos postes. Um cachorro derrubando a lata de lixo o fez enfiar a displicência nos bolsos e experimentar uns passos vagarosos, mas a verdade é que não temia a noite. Fazia dela sua companheira, já que por mais que se lançasse em bares, ruas cheias e casas noturnas, ninguém caminhava ao seu lado. É que à noite, as lindas e sorridentes máscaras do dia eram deixadas em casa, trocadas pela animalesca face original, que mantinha-se segura, oculta pela densa escuridão. Então, ficava fácil envolver a cintura de uma mulher obscura, copulando com todos os buracos, entre os quais não se sabia quais tinham origem natural e quais eram nacos arrancados nos tropeços da vida, se elas podiam o benefício da entrega, do prazer e do dinheiro sem, supostamente, o pudor. (Com o tempo, os olhos das moças aprendiam aquela cegueira e suas mentes começavam a supôr as imagens: e eram homens tão feios, mesmo que bonitos fossem, e trajavam sempre um imponente e imperativo terno, mesmo quando lhes despia, que crescia de novo no peito uma afogada, abafada vergonha). Dizendo assim, um cidadão diurno até diria que é cruel a boemia, porque ainda não ouviu dos privilégios que se lhe atribuem: ninguém tem de ser claro, não é necessário justificar as ações com mais do que "eu bebi demais aquela noite". Pode-se debater, arrancando de si as peças de puro aço que prendem as pessoas nos trejeitos e dizeres aceitáveis, elegantes, bacanas, certos. No entanto, a noite não é o caos. 
    Suspeito, estrangeiro, ele viu seus amigos bebendo e jogando conversa fora encostados num carro cujo som era realmente alto. Foi se despedir porque, ao Sol, se encantara com face de uma menina-dia (o amor é de dia e de noite) e quis contar-lhes que estava feliz, mas eles não ouviriam nada que não fosse estupidamente engraçado ou terrível.

19 de maio de 2012

Confusão

Fico pensando se nós
por nós nos bastamos
com os nós que nos atamos
e por quê? e por quantos anos?

Me amedronto da poesia
(porque quando lhe exijo a rima
me obriga àlgumas palavras
que eu preferia não relacionar)

Mas mais porque ela é carta
Destinatário e remetente assinalados
E o conteúdo, cheio de eufemismos,
não está certo do assunto que diz.

Mas fico mesmo indignada
Cadê coragem e certeza
quando preciso delas?
Cadê a característica destreza
em dizer as coisas belas?
Cadê os fins de frase afogados,
os pontos-finais bem regrados?

E onde foi parar a moça-decisão?
Será que arranjou a morada que queria,
se instalando feito posseiro
dentro do seu coração?

13 de maio de 2012

Unos como máquinas do tempo

   No escritório ridiculamente subdividido, no sétimo andar do cinzento prédio da Pinto Fernandes Construções, atendendo e fazendo telefonemas de média importância, Rogério juntou dinheiro o bastante para comprar seu primeiro carro. Não, não... não era um carrão nem nada, mas dava pra ir aos poucos lugares que costumava frequentar. Foi num bar que o conheci. Alguns amigos trocaram seu nome pelo meu e nós dois trocamos apertos de mão. Nessa época, a cabeça de Rogério já tinha rodado alguns quilômetros e ele me dizia coisas que me amedrontavam. "Se houvesse pra onde ir, eu iria." Rogério confiou em mim, nos tornamos amigos em menos de uma noite.
   Passamos a conversar todos os dias. Ele me ligava ou nos encontrávamos ao fim do expediente e eu lhe dava boas esperanças do que seria amanhã. Num desses encontros, bêbado, ele me confessou o que todo bêbado alguma hora confessa. "Só que ela nunca vai gostar de mim..." e daí eu dei uns conselhos que seriam esquecidos na manhã seguinte. Noutro dia, me encontrou na rua, buzinou de dentro daquele carro e disse "Estou indo.", antes que eu perguntasse pra onde, ele deu uma arrancada, tomou o rumo contrário e disse "Nos vemos por aí!". A moça no banco do passageiro pareceu realmente surpresa.
   Essa foi a última vez que tive qualquer notícia de Rogério... até esta manhã. Eu ainda dormia quando o telefone me trouxe uma voz de mulher desconhecida e cansada, perguntando se eu gostaria de encontrá-la. Porque hoje é sábado e eu não tinha nenhum afazer, topei e fomos nos ver num café perto de casa. Ao apertar minha mão, ela perguntou correndo se eu queria saber de toda a história de Roger e dois pensamentos vieram, um ao pé do outro: "Roger? Rogério?" e "Como essa moça sabe quem sou?". De qualquer forma, aquiesci sentando e a olhando com interesse. Respondendo minha pergunta, ela começou a história "Na primeira semana, teve essa loucura de que se chamava Roger e insistia em me chamar de Mary ou algo assim. Achei que ele delirava, porque falava realmente sério." Tudo nessa narrativa indicaria que ao fundo ouvíamos um negão tocar seu trompete e que a moça fumaria um cigarro atrás do outro e me contaria tudo displicentemente, mas não. Muito séria, ela continuou.
   Roger a havia buscado em sua casa, declarado-se e a colocado no carro e dado partida, tudo em menos de vinte minutos. Ela divertida com a aventura, topou. Achou que iam até a esquina ou até o Parque do Ibirapuera, mas foram parar na estrada. Sem parar o carro, a levou prum lugar realmente longe que ela não sabia onde era. "Sabe, no começo era bem divertido, dormíamos no carro e fazíamos sexo no acostamento e ainda tínhamos algum dinheiro pra comida. Até a brincadeira dos nomes americanos eu topei." Os dois encontravam figuras brasileiras que não tinham onde ir, malandros, prostitutas, crianças abandonadas... e era bonito ver tanto verde para todo lado. Ela me contou que a sensação de liberdade a mantinha presa a Rogério, tal como as cordas que às vezes ele punha em volta de seus punhos.
   Numa noite, ela conseguiu ligar pra sua mãe, contou que estava bem e bem longe, que não era pra chamar a polícia e que sabia que já tinha perdido o emprego. Desligou chorando e se despediu dele também, dizendo que não podia mais voltar pra casa e acabariam se encontrando onde todos os caminhos levam, Denver. Eu não sabia onde era isso, mas resolvi não atrapalhar a história. "De fato, nos reencontramos, mas não foi em Denver, não... foi para os lados de Itaquaquecetuba, eu, ali na beira, sempre era confundida com prostituta ou mendiga, tsc... vi seu Uno correndo lá longe na estrada e ele me viu também." Transaram como loucos no banco de trás aquela noite e foi quando ele a contou que sentia minha falta, que achava que eu seria uma boa Sal Paradise para o casal Dean e Marylou que eles faziam. Nesses termos, eu é que coloco agora.
   Nisso já havia um ano passado, ela me contou. Certa noite, eles pertinho de São Paulo, foram parados por uma blitz... não a primeira, é claro, mas dessa vez ele havia se embebedado. Viram as luzes de longe e, sabendo que seriam pegos, pararam o carro e desceram no acostamento. O combinado era esperar ali até a manhã seguinte, até que a blitz fosse embora. Ela não sabe o porquê, disse indignada e agora chorando, "mas ele entrou no carro, posicionou-o na contramão e foi em direção ao fluxo...". Ela parou de falar por causa dos soluços, mas eu já tinha entendido. "Nada pode um cara que viajou no tempo nessas estradas de hoje em dia..."
   Rápida como aprendeu a ser, Mary deixou o convite do velório ao lado da xícara vazia e se levantou dizendo "Nice to meet you, see you 'round", mascando um fio de palha imaginário. E se assustou antes que eu fizesse o mesmo.

7 de maio de 2012

Linguagens

Vem a mim a moça Imagética,
quase chega, deixa à míngua
apesar do apreço pela minha Língua,
faz-me destruir minha própria dialética
(e minhas convicções e os sermões)
Me faz ficar sem palavras ê
nada posso fazer senão
afogar fins de frase nos cabelos dela.

Mártir

Um dia, seu nome estará
na rua, no prédio
no letreiro do teatro.

Vai ser tudo só seu!

E não vai ser porque
é nome bonito, sonoro
ou de ilustres ancestrais.

Vai partir de você!

Seus pais disseram
"vai ficar lindo no rg."
"vai ficar forte no boletim."

E era uma combinação e tanto!

Será desgastado e apoderado
aquele velho seu nome
será abreviado e reutilizado.

Você vai ser ponto de referência!

Vai ser sinônimo de rua
de prédio, de teatro
Vai ser de todo mundo.

Mas só quando não for mais seu.

Prometo lembrar pra sempre
que era do grandioso tu, o nome
e ter orgulho da homenagem.

Mesmo que o nome seja só um pedacinho mínimo de você...

Destruição divina

O pecado em mim é bruto
Atinge-me nas partes não libertas
se munindo dos meus preconceitos
e fingindo-lhes justificativas

Me julga e me rotula
Me cinge e me modula

Cria um Deus ao lado da orelha direita
que observa-me movimentar atuando
espreitando todos os mínimos pensamentos
(e por isso é fictício e por isso sou eu)
Quase em silêncio, brande a mão armada
e espera em julgamento.
Espera o mundo dar uma volta inteira
pra alma querer se ferir novamente.

E só há uma guerra tão injusta
quanto a que se trava com um ser superior e criador
é a guerra que se trava
em escondidos campos de batalha
que não tira sangue, mas dói fundo
que não tem general que pare
a guerra em partículas
Guerra cuja espada que atravessa o guerreiro
atravessa junto seu inimigo
(porque são um só e por isso sou eu)
a destruidora e incomparável
guerra consigo mesmo.